Vamos nesta segunda etapa da ronda rumar diretamente a Sul. Fazer a travessia do Alentejo e entrar no reino do Algarve, pelas típicas estradas alentejanas, estreitas e com escasso movimento, longas retas pontualmente interrompidas por umas poucas curvas quando se cruza algum rio ou ribeiro: curvas a descer em direção à linha de água, uma pequena ponte lá no fundo, mais umas curvas a subir e retomamos a planície ondulada, que nestes dias nos apresenta um restolho seco com bonitos tons de um suave dourado. De longe em longe, a paisagem é acrescentada com alguma aldeia ou vila, umas em que a estrada cruza o âmago da povoação, outras em que se vê o povoado caiado de branco ao longe e que a estrada contorna. Com o passar dos quilómetros encontramos um certo ritmo nestas estradas, como uma música, como uma dança.
Saímos do hotel junto aos Almendres e seguimos de imediato em direção a Santiago do Escoural. Passamos ao lado das grutas que pretendíamos visitar na véspera, mas que nesta viagem não iria ser possível. Não há problema, estes viajantes são pacientes e podem sempre regressar noutro tempo (José Saramago, em “Viagem a Portugal” refere-se a ele próprio como “o viajante”, e esta é uma descarada apropriação, em forma de homenagem, que o contexto justifica e desculpa). Junto a Santiago do Escoural entramos na agora mítica N2, a estrada mais longa do país, que rasga o interior de Chaves a Faro. Este é o troço do Alentejo profundo da N2 que que nos vai levar até Almodôvar onde iremos mudar de direção para oeste, no sentido das montanhas de Monchique. O nosso destino final: Silves.
Ainda antes de abandonar a N2 era necessário resolver a questão do almoço. A percorrer o interior alentejano, com escassas e pequenas povoações, não é fácil, senão impossível, encontrar um restaurante que se preocupe com questões vegetarianas. Por acaso, passamos junto a Aljustrel por um supermercado ao lado da estrada, paramos de imediato, abastecemos de mantimentos para uma refeição e continuamos viagem, agora com os sentidos em se encontrar um local aprazível para o nosso piquenique. Alguns quilómetros à frente, na aldeia de Rosário, reparamos junto à estrada num pequeno parque infantil com sombra e duas ou três mesas. E foi ali, no Rosário, que fizemos o nosso piquenique. Mesmo em frente, do outro lado na N2, um restaurante permitiu-nos finalizar a refeição com um café na esplanada.
Foi antes de entrar em Almodôvar que infletimos o rumo em direção a Monchique. Abandonamos a N2 e entramos numa estreita estrada, a N393, que cruza curvilínea montes desertos. Um estrada muito interessante, de piso degradado mas a proporcionar grande prazer de condução, atravessando uma paisagem montanhosa, seca e de escassa vegetação. A suavidade da planície alentejana dava agora lugar a uma ondulação encrespada, como se o chão anunciasse tempestade. Este troço da N393 terminou depressa demais, pelo prazer que proporcionou, e em pouco tempo estávamos na IC1, onde percorremos alguns quilómetros até à viragem em direção a Monchique. E estamos agora novamente em plena estrada de montanha, a N267, atravessando a Serra de Monchique. Estrada muito retorcida, com uma paisagem verde, de vegetação mais intensa e frondosa, mas igualmente deserta de povoações. Impressiona a rugosidade aguda destes montes e a quantidade de quilómetros que percorremos, já em pleno Algarve, sem encontrar qualquer sinal de povoações ou de pessoas.
Monchique, com as suas termas e a famosa água, foi vista apenas de passagem e subimos de imediato ao alto da Fóia, o ponto mais elevado do Algarve, com os seus 902 metros de altitude. Deste local consegue-se ver, para norte, o enrugado da serra que separa o Algarve das planícies do Alentejo e, olhando para sul, uma vasta extensão do litoral algarvio, que por estes dias estivais estava certamente a fervilhar de veraneantes, que de férias fogem da aglomeração urbana para se aglomerarem junto ao mar. Para nós, na altitude do alto da Fóia, tudo parecia tranquilo e o silêncio enganador, apenas acompanhado pelo som do vento quente que soprava, escondia a agitação do turismo balnear do litoral algarvio.
Após um momento de descanso chegou a hora de descer da Fóia e rumar a Silves. Nesta altura o calor foi verdadeiramente incomodativo, o ar escaldante do interior algarvio soprava um bafo tórrido. Foi, durante toda a ronda, a altura em que o calor mais se fez sentir. Antes de chegar a Silves percorremos o início da estrada N124, que seria a nossa companheira para o dia seguinte. Depois de alguma dificuldade em encontrar o local do alojamento que estava reservado no centro histórico, a poucos metros da Sé e do Castelo, e se conseguir ter acesso à chave, finalmente entramos nos alojamentos. Era uma casa minúscula, com três pisos, cada um deles muito pequeno e uma escada apertada, a fazer lembrar estarmos embarcados em algum navio mercante. Recorda-nos de como os critérios de habitação mudaram: há poucos anos esta habitação seria suficiente, e foi-o certamente, para ser o lar de uma família alargada. Neste fim de tarde o calor dentro da casa era insuportável, sendo que no último piso, onde se encontrava a casa de banho e o terraço, era verdadeiramente um forno. Para suavizar o inferno apenas umas ventoinhas ao nosso dispor, que pouco conseguiam ajudar.
Por estes dias realizava-se e Silves um animado festival medieval de cultura árabe. Concertos, desfiles de figurantes vestindo roupa árabe, teatro, danças, de tudo um pouco animava as ruas de Silves, repletas de turistas. É curioso como a cultura árabe é celebrada por estas terras, onde parece ter mantido uma influência superior a outras zonas do país. Na altura do domínio árabe foi uma imponente cidade do al-Gharb al-Andaluz denominada de Xelb (ou Xilb) e comprável em importância a Sevilha ou Córdova. Na visita ao belo castelo de Silves, construído numa pedra em tons de vermelho quase parecendo feito de tijolo, destaca-se na entrada a estátua de D. Sancho I, o primeiro rei cristão a conquistar este castelo aos mouros, em 1189. Talvez, e pela importância que aqui tem a herança árabe, mais justo seria que a estátua fosse do califa almóada Al-Mansur que reconquistou Silves dois anos depois (sendo que foi conquistada definitivamente aos mouros em 1242, no reinado de D. Afonso III). O castelo está muito bem conservado e é um monumento vivo, com exposições com vários artefactos, ruínas árabes, uma bonita cisterna e uma esplanada onde, naquele dia, se podia assistir a uma reconstituição de uma feira medieval e se preparava um concerto de música árabe.
Nessa noite o jantar foi na esplanada de num restaurante vegetariano, mais uma boa surpresa, localizado numa das estreitas e movimentadas ruas de Silves. Depois do jantar subimos ao terraço da nossa casa ardente e ficámos algum tempo a apreciar o céu noturno, a apanhar um pouco do ar fresco daquela noite de verão e a ouvir um rumor de música que nos chegava do concerto que decorria no castelo. Ao finalizar a noite ainda nos foi possível ver uma fugaz mas brilhante estrela cadente a cruzar os céus, talvez um bom prenúncio para o dia seguinte.
Vista do Alto da Fóia
Rua de Silves, junto da Sé
Entrada do Castelo de Silves com estátua de D. Sancho I