A desculpa de Deus
Se Deus existe é bom que tenha uma boa desculpa
Woody Allen
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Se Deus existe é bom que tenha uma boa desculpa
Woody Allen
Por várias vezes vi um velho que regressa do centro comercial. Desloca-se muito lentamente. Dolorosamente. Uma perna de cada vez, apoiado numa bengala na mão esquerda e de olhos colados no chão. Cada passo é um sofrimento. Após se deslocar alguns metros pára, numa aparente iminência da desistência. Tenho dúvidas que volte a retomar o seu caminho, a qualquer momento pode desistir definitivamente e deixar-se ficar, derrotado. Mas não, de alguma forma descobre a força necessária, e retoma a sua lenta jornada apoiado na bengala e os olhos sempre colados ao chão. Devagar. Em sofrimento. Sozinho.
Imagino o que move aquele velho a regressar a casa. E o que o moveu anteriormente a sair de casa. Imagino que em casa ninguém o espera, será talvez viúvo, sem filhos ou filhos ausentes. Não tem pressa. Nada o espera. Imagino que vai todos os dias ao centro comercial, talvez comer uma sopa, sempre no mesmo sítio, sempre sozinho. Provavelmente troca algumas palavras com o empregado para combater a solidão antes de iniciar o regresso a casa, uma travessia de solidão, dor e sofrimento.
Aquele velho já foi novo. Em tempos correu, brincou, teve amigos, amores e desamores, irritações e ambições, construiu uma vida. Agora regressa devagar todos os dias a uma casa, a uma vida, onde ninguém o espera. Sozinho, doente e indiferente ao mundo, que já pouco lhe pode dizer. O mundo está cada dia mais distante daquele velho. Mas cada passo é uma vitória e uma demonstração de coragem.
A idade concede-nos a sabedoria de saber que não nos devemos irritar com o que não controlamos. O comportamento dos outros é aceite com a postura filosófica de quem está imune a certas atitudes. O foco é o meu comportamento, é o que depende de mim. O que os outros fazem é da exclusiva responsabilidade deles. As suas atitudes são acidentes geográficos que todos temos que enfrentar na viagem. Nunca me lembraria de gastar energias em pedir ao rio que altere o seu curso para me facilitar o caminho. A arte de viver está na escolha das lutas que vale a pena lutar.
Esta atitude de intocável, de lobo solitário e impassível, é viável para enfrentar as situações da obrigatória convivência na sociedade, mas, a menos que queiramos ser eremitas, para relacionamentos mais íntimos não funciona. Há desejos, objetivos, planos e partilhas que dependem de nós mas certamente também de outros. Nessa situação ou investimos no outro ou abdicamos do objetivo. Um exemplo é o casal, que tem que ser necessariamente algo mais do que duas pessoas que partilham (ou dividem?) uma vida. É preciso adequar os nossos objetivos aos objetivos do outro, sem que isso seja considerado uma diminuição da pessoa. Escolher é sempre abdicar. Como na viagem, escolher uma estrada é abdicar de muitas outras.
O grande mistério não é termos sido lançados aqui ao acaso, entre a profusão da matéria e das estrelas; é que, da nossa própria prisão, conseguimos extrair, de dentro de nós mesmos, imagens suficientemente poderosas para negar a nossa insignificância.
André Malraux
A improbabilidade da nossa existência, que de matéria forjada nas estrelas se tenha produzido a vida, e que essa vida tenha ganho consciência e que essa consciência tenha uma ténue compreensão do que nos rodeia é algo de totalmente esmagador. Se nos fosse possível ter a noção dessa improbabilidade, de que não somos mais que uma fugaz organização de matéria que só foi possível por motivos fortuitos e da total impermanência da nossa existência poderia provocar um sentimento de total vazio, o terror da não existência: se não somos nada, mesmo nada, então o que vale o que sou agora? A minha existência é tão insignificante, é tão tendencialmente nula, que haverá alguma diferença entre existir e não existir?
Durante a noite de forma surpreendente os galos começaram a cantar. Não sei que horas seriam, lá fora o céu está negro, a noite vai alta e não se deslumbra o clarear da madrugada. A cidade dorme, ruas desertas só interrompidas ocasionalmente por algum automóvel notívago. O dia tinha sido abrasador, com um calor de derreter vontades, mas finalmente a noite começava a emanar uma suave aragem fresca que me tocava na pele como a água fresca que mata a sede. E os galos cantaram, ao despique. Agora um, logo depois outro, um canto esganiçado e estridente mas decidido, um pouco mais distante. E repetiam-se os cantos, uns atrás dos outros, não sei quantos galos seriam. Quatro? Cinco? Alguns minutos depois, e da mesma forma abrupta como iniciaram o seu despique, os galos calaram-se. A noite regressava ao seu negro silêncio.
Continuei a beber a aragem refrescante desta primeira noite do Verão. Lentamente, começa então entrelaçar-se na brisa um leve chilrear de pássaros. A princípio nem se repara, é como se a aragem viesse suavemente cavalgada pelo leve chilrear dos pássaros. Mas lentamente mais vozes se vão juntando ao coro e agora o alegre chilrar polifónico distingue-se claramente na brisa. Olhei para o horizonte e já se consegue distinguir um tímido clarear do céu, um prenúncio de luz. É a madrugada que rompe. O chilrear é agora impossível de ignorar e, pouco depois, os galos voltam a cantar, agora sim, na hora do despertar. A noite já não e escura, o dia prepara as suas cores e no céu umas nuvens inesperadas anunciam um dia mais fresco. A cidade vai acordando. Está na hora de retomar a vida. Vou-me deitar.
Devagar, o tempo transforma tudo em tempo.
O ódio transforma-se em tempo,
O amor transforma-se em tempo,
A dor transforma-se em tempo.
Os assuntos que julgávamos mais profundos,
mais impossíveis, mais permanentes e imutáveis,
transformam-se devagar em tempo.
José Luís Peixoto
Eu fiz um acordo com o tempo...
Nem ele me persegue, nem eu fujo dele...
Qualquer dia a gente se encontra e,
Dessa forma, vou vivendo
Intensamente cada momento...
Mário Lago (1911 - 2002)
O livro Time: A user's guide de Stefan Klein contém uma ideia que é uma revolução copernicana sobre o entendimento do tempo: refere o autor que, à semelhança de conceitos como a felicidade ou o sentido da vida, em que o mais importante é o entendimento interior que cada um tem do que circunstâncias exteriores, no sentido do tempo acontece o mesmo.
A passagem do tempo depende assim da forma como nós entendemos mentalmente o tempo. Esta ideia, depois de lida, parece evidente. Todos sabemos por experiência própria que o tempo é relativo e a ideia é realçar que a forma como lidamos com o tempo, como o tratamos interiormente, a consciência que temos do tempo, tem uma influência determinante sobre o que ele significa para nós. Temos o poder de, em vez de ser que o tempo que passa por nós, sermos nós a passar pelo tempo.
Time: A user's guide, Stefan Klein
A ansiedade é um sentimento sobre o futuro, sobre algo que não aconteceu, que não existe e que não sabemos se irá existir. Estar ansioso é estar afetado pelo inexistente. O futuro deve ser encarado com tranquilidade e sem expetativas, positivas ou negativas. A ansiedade é a negação dessa tranquilidade. Viver o presente não é contraditório com planear o futuro. O detalhe está no grau de comprometimento mental com esse futuro.
Será a ansiedade um sentimento ou uma situação de distúrbio? Alguma utilidade deverá ter tido, senão a evolução teria-se encarregado de a eliminar. Talvez seja uma forma de o nosso corpo se preparar para situações previsíveis de perigo ou de alguma forma extraordinárias, mas é certo que ansiedade está atualmente na origem de muitos distúrbios relacionados com o stress. No livro Why Zebras Don't Get Ulcers, o biólogo Robert Sapolsky aborda precisamente a questão: a maioria dos animais não sente ansiedade apesar de saberem que muito provavelmente terão que lutar pela sobrevivência no futuro próximo. E é isso o fundamental para ser possível atingir a tranquilidade física e mental: viver e sentir o momento.
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