Construção efémera
Rio Águeda, 2016
Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]
Rio Águeda, 2016
Nunca perder de vista o gráfico de uma vida humana, que se não compõe, digam o que disserem, de uma horizontal e duas perpendiculares, mas sim de três linhas sinuosas, prolongadas no infinito, incessantemente aproximadas e divergindo sem cessar: o que um homem julgou ser, o que ele quis ser e o que ele foi.
Marguerite Yourcenar, Apontamentos sobre as Memórias de Adriano
O que um homem foi não é uma verdade única, é uma verdade múltipla, sinuosa sim mas finita, mas não é por isso que cada uma delas é menos real ou menos verdadeira.
E a memória? Em que medida é que a nossa memória seletiva do passado condiciona o que somos e o que pensamos que somos? Numa perspetiva do “eu” a única realidade sobre nós a que temos é a mente. A mente é a única que pode opinar sobre ela própria, só ela se pode conhecer a si mesmo. Uma visão moldada, também, pelo esquecimento. Mas não vale a pena questionar qual a verdadeira realidade porque todas existem, todas são reais. A nossa realidade é múltipla, é o que somos, o que pensamos que somos e, talvez, o que poderíamos ter sido.
Há uma antiga parábola budista sobre a diferença entre o Céu e o Inferno: Pergunta o discípulo ao mestre: - “Mestre qual a diferença entre o Céu e o Inferno?”. - “Vem comigo que eu mostro-te”, responde o mestre. E ambos vão até ao Inferno onde encontram um grupo de pessoas sentadas a uma mesa, com ar triste e arreliado. Sobre a mesa existe comida em abundância mas os talheres disponíveis tinham um metro de cumprimento. Tentavam desesperadamente comer com aqueles talheres, mas tal era impossível e estavam todos bastante esfomeados, infelizes e zangados. Depois, dirigiram-se ao Céu e, para surpresa do discípulo, a cena era idêntica. Um grupo de pessoas estava sentado a uma mesa com os mesmos talheres. Só que, em vez de estarem desesperadamente a tentar comer sozinhos com aqueles talheres, cada um deles alimentava quem estava à sua frente, e assim o grupo estava alimentado, feliz, descontraído e divertido.
Serve esta história para ilustrar que a diferença entre Céu e Inferno pode muito bem ser uma questão mental, pode ser simplesmente a forma como se encara cada situação de vida
O livro A Ignorância de Milan Kundera tem uma componente interessante sobre a relação das pessoas com o tempo. A relação entre passado, presente e futuro em cada um de nós e a sua variação ao longo da vida. Enquanto jovem o futuro é uma página em branco, onde tudo é possível. Como refere Kundera, o presente avançava sobre o futuro. Agora muito mudou. O peso do passado é grande e o futuro já não é uma folha em branco. Agora, é o passado que avança sobre o futuro. O passado são raízes que nos prendem, que arrastamos connosco, e nos impedem de ter um futuro livre. O futuro não será mais que a conquista do passado ao tempo.
A Ignorância, Milan Kundera
Sós,
Irremediavelmente sós,
como um astro perdido que arrefece.
todos passam por nós
e ninguém nos conhece.
Os que passam e os que ficam
todos se desconhecem.
Os astros não se explicam:
arrefecem.
Nesta envolvente solidão compacta,
quer se grite ou não se grite,
nenhum dar-se de dentro se refracta,
nenhum ser nós se transmite.
Quem sente o meu sentimento
sou eu só, e mais ninguém.
Quem sofre o meu sofrimento
sou eu só, e mais ninguém.
Quem estemece este meu estremecimento
sou eu só, e mais ninguém.
Dão-se os labios, dão os braços
dão-se os olhos, dão-se os dedos,
bocetas de mil segredos
dão-se em pasmados compassos;
dão-se as noites, dão-se os dias,
dão-se aflitivas esmolas,abrem-se e dão-se as corolas
breves das carnes macias;
dão-se os nervos, dá-se a vida,
dá-se o sangue gota a gota,
como um abraçada rota
dá-se tudo e nada fica.
Mas este íntimo secreto
que no silêncio concentro,
este oferecer-se de dentro
num esgotamento completo,
este ser-se sem disfarce,
virgem de mal e de bem,
esta dar-se, este entregar-se,
descobrir-se e desflorar-se
é nosso, de mais ninguém.
Rio Sever, 2016
Em 1901 foi descoberto no Mediterrâneo, nos vestígios de um naufrágio junto à ilha grega de Anticítera, um misterioso artefacto, datado de há mais de 2000 anos, constituído por um complexo conjunto de engrenagens de cobre. Na altura este mecanismo não suscitou grande atenção, mas mais tarde, em meados do Sec. XX, vários cientistas tentaram perceber qual o objetivo daquele achado reproduzir o seu funcionamento. As conclusões indicam que seria um mecanismo com capacidade de calendário astral e para indicar a posição astronómica de vários astros, incluindo todos os planetas do sistema solar conhecidos na altura, de indicar a ocorrência de eclipses e o ciclo dos Jogos Olímpicos. É considerado o primeiro computador de sempre, objeto único, insólito e genial considerando a data em que foi produzido. O conhecimento necessário para construir algo semelhante ao mecanismo de Anticítera só viria a surgir novamente mais de 1500 anos depois.
Esta história serve para nos lembrar que a evolução humana é feita de avanços e recuos. Tal como acontece com a ciência e o conhecimento, também as sociedades humanas estão sujeitas a avanços e recuos civilizacionais. Não podemos dar como adquirido que a civilização está a evoluir no sentido certo, e todos temos o dever de honrar os nossos antepassados esforçando-nos para que a as grandes conquistas civilizacionais não se percam. A modernidade não é sinónimo de evolução.
Lembro-me disto assistindo ao que se passa hoje no mundo.
Estar reclinado no sofá com os dois filhos encostados a mim, um de cada lado, cada um sobre um dos meus braços, a cabeça nos meus ombros e com as suas pernas sobre mim. Eles serenamente veem televisão e eu, simplesmente, desfruto da sua existência. Por uns momentos não há nada mais importante na vida, não há preocupações, não há urgências, não há horários, não há tarefas por fazer. Naquele momento estamos simplesmente juntos, a usufruir da presença da cada um.
Estrada Nacional N246-I (Castelo de Vide - Portagem), 2016
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.