O destino destina,
Mas o resto é comigo.
Miguel Torga, In Orfeu Rebelde
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O Inferno
são os outros
mas o Céu
também
Adília Lopes
O poema ensina a cair
sobre os vários solos
desde perder o chão repentino sob os pés
como se perde os sentidos numa
queda de amor, ao encontro
do cabo onde a terra abate e
a fecunda ausência excede
até à queda vinda
da lenta volúpia de cair,
quando a face atinge o solo
numa curva delgada subtil
uma vénia a ninguém de especial
ou especialmente a nós uma homenagem
póstuma.
Luiza Neto Jorge
Cláudio Magris, Instantâneos
Para a felicidade é fundamental manter a paz de espírito com o tempo. E vastas vezes sinto a inquietação de passar pelo tempo demasiado depressa, num eterno desequilíbrio sempre empurrado em direção ao futuro. Creio que um antidoto para a velocidade do tempo será a lentidão. Agir devagar, pensar devagar, não ter pressa de terminar ou de chegar. A lentidão pode ser um alicerce importante na procura do equilíbrio com o tempo.
De todos os nossos bens materiais nenhum será mais pessoal, íntimo e único do que a biblioteca formada pelos livros que vamos comprando ao longo da vida. Os livros revelam os nossos interesses, os nossos gostos pessoais, as nossas preocupações, o nosso sentido estético e também revelam a sua evolução ao longo dos anos. A biblioteca é um ADN, único de cada um de nós, onde os genes são livros. Uma biblioteca é algo de tão íntimo, que na verdade só é importante e faz sentido para quem a construiu.
Por este motivo não posso deixar de sentir um certo aperto de tristeza quando vejo os livros à venda nos alfarrabistas. Aqueles livros, que já foram um pouco da identidade de alguém, provavelmente adquiridos ao longo de anos e com sacrifício. E quando, após a sua morte, se desmantela e se vende avulso a sua biblioteca, ao contrário de qualquer outro bem, está a vender-se um pouco da definição única de um ser vivo que para sempre de perderá.
The greatest enemy of knowledge is not ignorance, it is the illusion of knowledge.
Stephen Hawking (8 de janeiro de 1942 – Cambridge, 14 de março de 2018)
O destino destina,
Mas o resto é comigo.
Miguel Torga, In Orfeu Rebelde
Ao abrir a janela do quarto para outras
janelas de outros quartos, ao veres a rua que desemboca
noutras ruas, e as pessoas que se cruzam, no início da
manhã, sem pensarem com quem se cruzam
em cada início da manhã, talvez te apeteça
voltar para dentro, onde ninguém te espera. Mas
o dia nasceu – um outro dia, e a contagem do tempo
começou a partir do momento em que
abriste a janela, e em que todas as janelas
da rua se abriram, como a tua. Então, resta-te
saber com quem te irás cruzar, esta manhã: se
o rosto que vais fixar, por uns instantes, retribuirá
o teu gesto; ou se alguém, no primeiro café que
tomares, te devolverá a mesma inquietação
que saboreias, enquanto esperas que o líquido
arrefeça.
Nuno Júdice
Os medos, expostos ao tempo, vão sofrendo um fenómeno de erosão semelhante às rochas na intempérie. A rocha fica exposta, perde volume, e é polida pelo trabalho dos ventos e das chuvas. Aos medos, que habitam dentro de nós, protegidos dos elementos, para a sua erosão basta somente a passagem do tempo. Tornam-se mais suaves, menos imediatos e concretos, ganham subtileza. E também, lentamente, de forma quase inadvertida, tal como uma erosão, vão transferindo o seu sujeito. A erosão dos medos transforma-os em algo de menos íntimo e ficam expostos ao outro: os meus medos já não são sobre o que me pode acontecer pessoalmente mas sobre o que pode acontecer aos outros, muito especialmente, aos meus filhos.
Parece hoje impossível que em qualquer evento que consideremos memorável as pessoas não recorram ao seu smartphone para registar o momento. Viver transformou-se num incansável recolher de conteúdos, seja para partilhar ou simplesmente para ficar registado na memória digital e imutável do nosso equipamento. Mas uma memória é muito mais que uma fotografia, uma memória é uma entidade autónoma que existe em nós, que vive e morre, que se transforma, que aparece e desaparece. E uma memória é também um sentimento.
De que forma é que a prioridade à recolha do conteúdo afeta as memórias que vamos construindo em nós? Porque não é certamente inócuo para a memória estar a viver um acontecimento ou a fotografá-lo ou filmá-lo. Os mecanismos que determinam se uma memória fica viva em nós, se desaparece misteriosamente nos subterrâneos escuros do nosso inconsciente, e porque motivos vem à luz em determinados momentos, são misteriosos. A forma como assistimos afeta o conteúdo das memórias que iremos, ou não, construir daquele momento (porque uma memória é uma construção). E não podemos ignorar que o melhor da vida é ter um bom passado, e que o passado pouco mais é do que as memórias que soubemos construir.
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