Só o celibatário que ama superiormente os filhos vê mais além de si próprio e mede as consequências de infligir a sanção da vida a um não-ser. Será a vida tão extraordinária, alegre, feliz, lúdica, desejável, fácil, para oferece-la aos rebentos o homem? Será necessário amar tanto a entropia, o sofrimento, a dor e a morte para, ainda assim, oferecer a vida como uma trágica prenda ontológica?
Michel Onfray, A potência de existir, Manifesto hedonista
Campo da Comunicação, 2009
Com estas palavras Michel Onfray exprime a sua opinião sobre se o ser humano tem o direito de querer ter filhos, o que significa, como refere, “inflingir a sansão da vida a um não-ser”. Existe, é claro, um importante fator animal: todos temos o instinto, que partilhamos com todos os nossos antepassados, de nos reproduzirmos para deixar a nossa herança genética à próxima geração. Todos pertencemos a uma linha de vida ancestral, com origem no primeiro ser que se reproduziu, em que todos os nossos antepassados se reproduziram com sucesso. É portanto natural que, se estamos vivos hoje, é porque os nossos antepassado tinham todos este instinto de reprodução que nos acompanha até hoje. Sempre que um ser não se reproduz, por opção ou não, há uma linha de vida que se quebra definitivamente. A reprodução é a única forma de imortabilidade ao nosso alcance: deixar a nossa herança genética no mundo.
Vejamos para além do instinto, pois o animal que existe em nós está disfarçado debaixo de uma fina mas importante camada de verniz civilizacional. A vida pode ser, e é, constituída por sofrimento. O tempo em que não é sofrimento será pura ilusão ou estupidez nossa. O meu sentimento dominante é de uma tristeza esclarecida, de uma melancolia permanente. Ainda assim, decidi ser pai e, para surpresa minha, a paternidade foi a maior epifania da minha vida. Sei que os meus filhos terão que sofrer ao longo da vida. Mas cada sorriso, cada momento de felicidade, cada sentimento de amor e carinho, faz valer a pena todo esse sofrimento. Cada instante de alegria é uma derrota sobre a não-existência.
A minha questão primordial, colocada ao Universo,“Porque é que existe algo em vez de nada?” tem , em certa medida, resposta na reprodução: se existe algo, se o Universo venceu a inércia e foi capaz da extrema improbabilidade de criar consciência, temos o dever de, talvez com o elevado custo do sofrimento, combater a não existência. É só o que nos resta.