Pandemia, os números que importam
Nestes dias de pandemia todos os dias somos inundados com números, como se tudo o que existe e o que não existe fosse possível de simplificar com uma estatística, até mesmo o novo silêncio das ruas vazias da cidade. É também nestes dias que mais precisamos dos poetas, para nos recordar que existem outros números bem mais importantes.
Em cem pessoas,
sabedoras de tudo melhor —
cinquenta e duas;
inseguras de cada passo —
quase todo o resto;
prontas para ajudar,
desde que não demore muito —
quarenta e nove;
sempre boas,
porque não conseguem de outra forma —
quatro, talvez cinco;
dispostas a admirar sem inveja —
dezoito;
constantemente receosas
de algo ou alguém —
setenta e sete;
aptas para a felicidade —
vinte e tal, quando muito;
individualmente inofensivas,
em grupo ameaçadoras —
mais de metade, com certeza;
cruéis,
por força das circunstâncias —
é melhor não sabê-lo,
nem aproximadamente;
com trancas na porta depois da casa roubada —
quase tantas como
aquelas que as têm, antes da casa roubada;
não levando nada da vida a não ser coisas —
quarenta,
embora preferisse estar enganada;
agachadas, doloridas
e sem lanterna no escuro —
oitenta e três,
mais tarde ou mais cedo;
dignas de compaixão —
noventa e nove;
mortais —
cem em cem.
Número, até agora, não sujeito a alterações.
Wisława Szymborska, in Instante, tradução de Elżbieta Milewska e Sérgio Neves, Relógio D'Água