Aforismo
A ciência desenha a onda; a poesia enche-a de água.
Teixeira de Pascoaes, Aforismos, seleção e organização de Mário Cesariny, Assírio & Alvim, 1998
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A ciência desenha a onda; a poesia enche-a de água.
Teixeira de Pascoaes, Aforismos, seleção e organização de Mário Cesariny, Assírio & Alvim, 1998
Depois da viagem chega o momento de a reviver, de construir memórias, de ressentir emoções. Foi este o objectivo destes pequenos textos sobre esta viagem, não a podia perder nos confins misteriosos da memória. É preciso cuidar das memórias como o jardineiro cuida do seu jardim.
Quando se inica a viagem? O início da viagem é difuso: há a ideia que nasce, há os planos que se desenham, há a viagem imaginada. Tudo isto também é viagem. Olhar para o mapa e escolher percursos, imaginar estradas e paisagens, fazer escolhas e pesquisar, ler nomes num mapa e desejar lá ir apenas por um instinto íntimo e nada mais. Várias vezes o plano da viagem foi alterado, retocado e corrigido até que possuímos a versão final, a poucos dias de iniciar a viagem. E na viagem o plano foi somente esboço, várias vezes foi ignorado, várias vezes nos perdemos, várias vezes seguimos estradas e caminhos que não foram planeados. E ainda bem.
Tal como o arquétipo excede a realidade, quase sempre o plano da viagem é melhor que a viagem. Não foi o caso. A viagem excedeu a expectativa, o concreto superou a ideia. Viajámos por um mundo maravilhoso, um mundo feito de beleza, segredos, silêncios e feitiços. Foi assim também porque, como escreveu Pessoa, “quem faz a viagem é o viajante”, não são os planos, os mapas, o GPS, as estradas ou as paisagens. E neste caso quem fez a viagem foram dois corações eternamente apaixonados.
Das limitações do GPS
Há lugares
que não aparecem
nos mapas –
só o coração
os pode habitar
José Carlos Barros, A educação das crianças
Há doenças piores que as doenças,
Há dores que não doem, nem na alma,
Mas que são dolorosas mais que as outras.
Há angústias sonhadas mais reais
Que as que a vida nos traz, há sensações
Sentidas só com o imaginá-las
Que são mais nossas do que a nossa vida.
Há tanta cousa que, sem existir,
Existe, existe demoradamente,
E demoradamente é nossa, é nós…
Por sobre o verdor turvo do amplo rio
Os circunflexos brancos das gaivotas…
Por sobre a alma o adejar inútil
Do que não foi, nem pôde ser, e é tudo.
Dá-me mais vinho, porque a vida é nada.
Fernando Pessoa, 1935
não se sai do abismo,
aprende-se a sua linguagem
Vasco Gato
Nestes dias de pandemia todos os dias somos inundados com números, como se tudo o que existe e o que não existe fosse possível de simplificar com uma estatística, até mesmo o novo silêncio das ruas vazias da cidade. É também nestes dias que mais precisamos dos poetas, para nos recordar que existem outros números bem mais importantes.
Em cem pessoas,
sabedoras de tudo melhor —
cinquenta e duas;
inseguras de cada passo —
quase todo o resto;
prontas para ajudar,
desde que não demore muito —
quarenta e nove;
sempre boas,
porque não conseguem de outra forma —
quatro, talvez cinco;
dispostas a admirar sem inveja —
dezoito;
constantemente receosas
de algo ou alguém —
setenta e sete;
aptas para a felicidade —
vinte e tal, quando muito;
individualmente inofensivas,
em grupo ameaçadoras —
mais de metade, com certeza;
cruéis,
por força das circunstâncias —
é melhor não sabê-lo,
nem aproximadamente;
com trancas na porta depois da casa roubada —
quase tantas como
aquelas que as têm, antes da casa roubada;
não levando nada da vida a não ser coisas —
quarenta,
embora preferisse estar enganada;
agachadas, doloridas
e sem lanterna no escuro —
oitenta e três,
mais tarde ou mais cedo;
dignas de compaixão —
noventa e nove;
mortais —
cem em cem.
Número, até agora, não sujeito a alterações.
Wisława Szymborska, in Instante, tradução de Elżbieta Milewska e Sérgio Neves, Relógio D'Água
Pois não era mais humano
morrer por um bocadinho,
de vez em quando,
e recomeçar depois,
achando tudo mais novo?
José Gomes Ferreira, Viver sempre também cansa!, 1931
Nada nos é tão precioso nem tão íntimo como o tempo, o nosso tempo, neste instante de existência perdido na eternidade. Para se ser feliz tudo o que é preciso é estar em paz com o tempo, essa criação individual, essa ilusão íntima criada para unir um fluir de eventos. Não existe nenhum pêndulo Universal a impor-nos o ritmo do tempo, esse ritmo é só nosso e é único.
A previsibilidade das nossas rotinas de vida, a repetição de horários, a ausência de surpresa e a habituação ao que nos acontece, tudo isto contribui para aumentar a sensação de velocidade com que o nosso tempo passa. Quando estamos num ambiente diferente do habitual, numa viagem, numa experiência nova, perante o que nunca experimentámos, do inesperado temos a noção de que o tempo passa mais devagar. A nossa mente está a absorver o que nos rodeia e temos a clara sensação de que o tempo decorre mais lentamente.
Será então solução evitar as rotinas? Receio que seria tarefa impossível. Porque a rotina é também ela uma criação da nossa mente. A ausência de rotina vai ser ela própria uma rotina, quer queiramos quer não, mais cedo ou mais tarde.
Como travar a velocidade do tempo? Morrer um bocadinho de vez em quando para depois achar tudo mais novo, como escreve o poeta, não nos é possível. Mas é possível estar focado no presente e mantermos a mente admirada com tudo o que nos rodeia. Estar grato por cada segundo em que estamos vivos. Olhar para o mundo com os olhos de uma criança, espantados com o que nos rodeia, com a beleza que há em tudo. É tão fácil manter um sentimento do maravilhoso perante o Universo. Em tudo há beleza e mistério se estivermos dispostos a reparar nisso. Só a sabedoria de manter uma alma espantada perante o mundo nos pode salvar da voragem alucinante do tempo.
Na hora de pôr a mesa, éramos cinco:
o meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs
e eu. depois, a minha irmã mais velha
casou-se. depois, a minha irmã mais nova
casou-se. depois, o meu pai morreu. hoje,
na hora de pôr a mesa, somos cinco,
menos a minha irmã mais velha que está
na casa dela, menos a minha irmã mais
nova que está na casa dela, menos o meu
pai, menos a minha mãe viúva. cada um
deles é um lugar vazio nesta mesa onde
como sozinho. mas irão estar sempre aqui.
na hora de pôr a mesa, seremos sempre cinco.
enquanto um de nós estiver vivo, seremos
sempre cinco.
José Luís Peixoto, 'A Criança em Ruínas'
Uma pessoa para amar
É quem nos vai criar
Nunca vais deixar de gostar
Mesmo se nos envergonhar
Mas temos que cuidar porque
Um dia vai-nos deixar
A., 11 anos
Para que saibas que tudo tem um porquê
excepto o Universo
ou seja tudo.
Catarina Nunes de Almeida, Livro Redondo, Ed. Língua Morta
pensei
que a liberdade vinha com a idade
depois pensei
que a liberdade vinha com o tempo
depois pensei
que a liberdade vinha com o dinheiro
depois pensei
que a liberdade vinha com o poder
depois percebi
que a liberdade não vem
não é coisa que lhe aconteça
terei sempre de ir eu
Sónia Balacó
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